Falsificações e cópias sempre existiram ao longo da história da arte e do colecionismo, produzidas geralmente com o intuito de enganar e obter ganho material, mas também como forma de aprendizado e demonstração da habilidade na criação de um objeto semelhante ao genuíno. Também colocam em evidência o lado mais sombrio dessa história, composto pela obsessão de colecionadores, pela ganância do mercado e pela arrogância de alguns historiadores de arte, que são, ao final, os árbitros dessa disputa.
Nesta exposição, apresentamos duas falsificações da Coleção Ema Klabin cuja história é fascinante: duas folhas de pergaminho retiradas de livros de canto litúrgico autênticos do século XV que tiveram uma de suas páginas raspadas, total ou parcialmente, para a inclusão de novas ilustrações realizadas entre o final do século XIX e início do XX, em estilo medieval, por um artista até hoje anônimo, conhecido como o Falsificador Espanhol.
Essas espécies de palimpsesto fraudulento foram criadas em um momento em que manuscritos iluminados estavam em alta no mercado, resultado de uma renovação do interesse pelo período medieval, que então representava valores mais sólidos e puros. Fez parte dessa retomada a arquitetura neogótica, o movimento Arts and Crafts, e até mesmo os artistas Pré-Rafaelitas. O Falsificador Espanhol foi um dos mais prolíficos e bem-sucedidos falsificadores da história.
1. Partida para caça
Falsificador Espanhol. Partida para a caça, c. 1900. Pintura sobre pergaminho, 47,5 x 37,0 cm. Casa Museu Ema Klabin.
Verso
Na primeira obra vemos uma cena de partida para a caça, com personagens da corte devidamente paramentados em seus cavalos e acompanhados por seus cães: as mulheres portando arco e flecha e os homens, lanças. Não fica claro se é uma caça ao javali ou ao cervo, ambos presentes. À esquerda, a partida é anunciada com uma corneta, enquanto um coelho se esconde em sua toca e, ao fundo, um típico castelo cercado por seu fosso de proteção. Toda a composição é cercada por uma moldura de folhagens, frutos e pássaros, minuciosamente detalhados. No verso dessa imagem, um trecho de antífona, canto recitado durante a missa que não tem nenhuma ligação com a imagem.
2. A Chegada da noiva
Falsificador Espanhol. A chegada da noiva, c. 1900. Pintura sobre pergaminho, 47,5 x 37,0 cm. Casa Museu Ema Klabin. Frente.
Verso
Nesta obra, vemos a chegada de uma dama para a celebração de noivado com o rapaz que a recebe no barco. Na margem, vemos a família do noivo que aguarda e, no topo do castelo, o evento é anunciado por trombetas e estandartes. Ao fundo, dois castelos, representando as propriedades das duas famílias. Na base da página, foi mantido o texto e capitulares originais do manuscrito, novamente uma partitura musical.
A Descoberta
A história do Falsificador Espanhol começa com a pintura em painel de O Noivado de Santa Úrsula, originalmente atribuída, por motivos estilísticos, ao mestre Jorge Inglés, artista espanhol do século XV. Em 1930, Belle da Costa Greene (1879-1950), respeitada diretora da Biblioteca Morgan de Nova York, recusou-se a apoiar a aquisição da obra pelo Museu Metropolitan, porque suspeitava que fosse uma falsificação. Em seu parecer, apontava diversas características que indicavam se tratar de uma obra moderna de “um falsificador espanhol”. A partir dessa descoberta, Belle iniciou uma pesquisa de nove anos em diversas coleções públicas e privadas, com o objetivo de alertar especialistas e colecionadores. Muitos artigos foram publicados e o nome Falsificador Espanhol passou a ser adotado por todos.
Falsificador Espanhol. O Casamento de Santa Úrsula, c. 1900. Óleo sobre madeira, 77,5 x 62,3 cm. Morgan Library & Museum, Nova York.
Certa vez, Belle comentou que as obras do Falsificador pareciam “medievais” demais para serem autênticas, indicando que correspondiam mais ao imaginário moderno sobre o período do que a obras autênti cas. Entre os aspectos técnicos que logo identificou nas falsificações estão o uso de pigmentos criados a partir do século XIX e o fato de a douração ser aplicada ao final da pintura, o oposto da prática medieval. Também determinou diversas características estilísticas do Falsificador: a falta de relação da imagem com o texto, os decotes exagerados das mulheres, a vegetação tirada de tapeçarias, a presença constante do castelo “Disney” e a mistura de penteados e vestidos de épocas e lugares diferentes, entre outras.
Obras do Falsificador Espanhol surgem até hoje e a Biblioteca Morgan continua a realizar sua catalogação sistemática: até 2019, já haviam sido encontradas 117 pinturas, 11 livros manuscritos e 284 páginas, incluindo as páginas da Coleção Ema Klabin. William Voelkle, curador da Morgan entre 1969 e 2019, sempre teve especial fascínio por falsificações e conseguiu identificar que as principais fontes composicionais e temáticas do Falsificador foram cinco volumes ilustrados sobre a vida e a cultura medieval e renascentista escritos por Paul Lacroix e publicados em Paris entre 1869 e 1882. De acordo com sua pesquisa, o Falsificador provavelmente era ativo em Paris no início do século XX, mas nada mais pôde ser descoberto sobre sua identidade. Pesquisas recentes apontam que ele poderia até ser norte-americano, já que grande parte de suas obras surgiram no mercado nos Estados Unidos em torno de 1900.
Em 1978, Voelkle realizou na Biblioteca Morgan uma exposição inteiramente dedicada ao Falsificador, a primeira exposição deste tipo em um grande museu, com grande sucesso e repercussão. Para essa exposição, todas as obras tiveram seus pigmentos testados para garantir que eram genuínas falsificações.
Catálogo da Exposição na Biblioteca Morgan, 1978
Desde então, as obras do Falsificador têm sido comercializadas e leiloadas por valores semelhantes às páginas autênticas medievais. Todos os museus e bibliotecas continuaram a preservar suas obras em suas coleções e a própria Biblioteca Morgan recebeu em doação, nas últimas décadas, algumas obras, incluindo a pintura O noivado de Santa Úrsula que deu origem a toda a história. Em 2009, cinco páginas do Falsificador foram adquiridas – com recursos públicos – pelo Museu Victoria & Albert, de Londres, com a justificativa de que as obras, além de possuírem qualidades estéticas, constituíam um importante registro do gosto pelo medievalismo no final do século XIX.
Falsificador Espanhol. A Arca da Aliança, c. 1900. Pintura sobre pergaminho, 20,5 x 14,5 cm. Victoria & Albert Museum, Londres.
Falsificador Espanhol. Susana e os anciãos, c. 1900. Pintura sobre pergaminho, 20.5 x 14,5cm. Victoria & Albert Museum, Londres.
Não há documentação precisa sobre a aquisição das duas páginas da Coleção Ema Klabin. Provavelmente foram adquiridas em 1975, em conjunto com obras genuínas, mas não há como saber se Ema Klabin sabia que eram falsificações. É bem provável que sim, já que acompanhava de perto o mercado e publicações, além de visitar com frequência a Biblioteca Morgan em suas viagens a Nova York.
Páginas genuínas
Na Coleção Ema Klabin há, também, duas páginas iluminadas autênticas, da década de 1520, que relatam os espetáculos realizados durante a entrada da Rainha Claude da França em Paris, em 12 de maio de 1517, logo após a sua coroação, realizada na Basílica de St. Denis, ao norte da cidade. Claude, Duquesa da Bretanha, era casada com seu primo François I, que ascendeu ao trono em 1515, e a união dos dois garantia a integridade e segurança do território francês. No trajeto entre a Basílica e o centro de Paris, vários palcos foram montados para representação de espetáculos que reforçavam a importância da nova rainha. Estas páginas iluminadas originalmente faziam parte de um livro de horas, de autoria de um membro do Grupo de 1520, do qual existem outras versões, da mesma época, uma delas mantida na Biblioteca Nacional da França.
Membro do Grupo de 1520. Espetáculo na Porta dos Pintores, c. 1520. Pintura sobre pergaminho, 26,0 x 16,0 cm. Casa Museu Ema Klabin.
1. Espetáculo na porta dos pintores
Na cena superior, A Fé floresce na França sob o efeito do sol da Caridade: sobre um jardim de flores de lis, representando o reino da França, a Fé, ao centro, encontra-se cercada por quatro divindades extraídas do repertório da Genealogia dos Deuses, de Boccaccio. Da esquerda para a direita, temos Náiade, ninfa das águas, Hamadríade, ninfa das florestas, Napeia, ninfa das flores, e finalmente, Oréade, ninfa das montanhas. Representam, elegantemente, a terra da França, suas águas, suas florestas, suas flores e seus vinhedos. No topo da cena, uma inscrição onde apenas a palavra “esperança” é legível. Abaixo: Aliança de príncipes europeus para uma Cruzada. De um lado, o Papa, cercado por cardeais e bispos. De outro, um imperador, um rei e príncipes. Entre as duas cenas, uma inscrição do oitavo capítulo do Código Teodosiano.
2. Espetáculo na porta do Palácio
Na parte superior, São Luís (Luís IX), rei de França, sentado entre sua mãe, Blanca de Castela, e a Justiça. Abaixo, três figuras, representando as causas populares, pedem a misericórdia. Ao centro, o trabalho, o “pobre injustiçado”, cercado por um mendigo miserável e o aventureiro, representando o criminoso arrependido. No topo, a inscrição: “a cama da justiça é coberta de flores”, uma variação do Canto dos Cânticos. Na base, os escudos de François I, à esquerda, e Claude, à direita
Cópias
Por último, apresentamos duas cópias da Coleção Ema Klabin. A primeira é da gravura Madona da Pera, de Albrecht Dürer (1471-1528), realizada pelo artista flamengo Hieronymus Wierix (1553-1619), que dedicou sua carreira a reproduções de obras de artistas conhecidos, que tiveram um importante papel na difusão da arte holandesa e alemã no exterior. Apesar de reproduzir fielmente a original, incluía suas iniciais em algum canto da gravura, identificando a cópia. Entretanto, no mesmo período havia outros gravadores que produziam o mesmo tipo de cópia, mas sem incluir nenhuma indicação e, neste caso, tentavam vendê-las como originais.
Membro do Grupo de 1520. Espetáculo na Porta do Palácio, c. 1520. Pintura sobre pergaminho, 26,0 x 16,0 cm. Casa Museu Ema Klabin.
Albrecht Dürer. Madona da Pera, 1511. Gravura em metal, 16,0 x 10,7 cm. Rijksmuseum, Amsterdã.
Hieronymus Wierix, cópia de Albrecht Dürer. Madona da Pera, 1563/1619. Gravura em metal, 15,8 x 11,0 cm. Casa Museu Ema Klabin.
Iniciais de Wierix
A outra cópia da coleção foi realizada por David Teniers (1610-1690), a partir de um original de Paolo Veronese (1528-1588), em um contexto específico. Teniers, além de pintor renomado, atuou como curador da coleção reunida pelo Arquiduque Leopoldo Guilherme, então governador geral dos Países Baixos. Na década de 1660, publicou um dos primeiros catálogos ilustrados de uma coleção, o Theatrum Pictorium, contendo as 243 pinturas italianas da coleção, que no total continha mais de 1.200 obras. Para facilitar o trabalho e garantir que as reproduções fossem fiéis aos originais, Teniers pintou cópias em miniatura de todas as obras, enviando-as aos diversos gravadores que participaram.
Com o tempo, essas obras em miniatura se tornaram objeto de desejo de colecionadores. Além disso, Teniers costumava pintar, por encomenda, cópias das obras da coleção em tamanho original e é bem provável que algumas delas hoje estejam em museus e coleções atribuídas aos pintores originais.
Paolo Veronese e ateliê. Adão e Eva depois da expulsão do paraíso, c. 1588/90. Óleo sobre tela, 124 x 174,5 cm. Kunshistorisches Museum, Viena
David Teniers, cópia de Paolo Veronese. Adão e Eva depois da expulsão do paraíso, c. 1660. Óleo sobre madeira, 21,5 x 30,7 cm. Casa Museu Ema Klabin
Jan van Troyen, cópia de David Teniers. Adão e Eva depois da expulsão do paraíso, 1673. Gravura em metal, 18,4 x 28,4 cm. Galeria Nacional da Eslováquia.
Questões finais
A autenticidade e a autoria de obras de arte são questões sempre difíceis de abordar, com muita margem para erros e novas interpretações no contexto da historiografia da arte. Até o século XIX, não eram questões muito relevantes, pois as obras valiam pela sua aparência e nem sempre eram assinadas ou bem documentadas. A obsessão com a autenticidade é um fenômeno recente, resultado da expansão do mercado de arte e a extrema valorização das obras, como também de um culto à personalidade de alguns artistas. Por isso mesmo, sempre haverá alguém disposto a falsificar em busca de lucro. Nesse contexto, deixamos aqui duas questões.
A primeira se refere a obras como as do Falsificador Espanhol, ou seja, criações originais que imitam certo estilo ou artista. Deixando de lado questões éticas, essa produção tem seu valor próprio como obra de arte? O jovem Michelangelo criou, em 1496, a escultura Cupido adormecido e a envelheceu artificialmente para vendê-la, como obra de Roma antiga, ao Cardeal Riario de San Giorgio. Quando a farsa foi descoberta, Michelangelo foi saudado como grande artista, impulsionando sua carreira.
A segunda questão refere-se a como nossa percepção e apreciação estética de uma obra de arte podem ser alteradas pela informação que recebemos sobre ela. Han van Meegeren (1889-1947), o mais famoso falsificador do século XX, imitou diversos pintores holandeses do século XVII, especialmente Johannes Vermeer. Quando suas criações apareceram no mercado, no final dos anos 1930, foram confirmadas por especialistas como obras primas genuínas, disputadas por museus e colecionadores, e reverenciadas pelo público. No final da Segunda Guerra, para não ser executado por colaboração com os nazistas, o próprio Van Meegeren se denunciou, demonstrando como havia envelhecido artificialmente as pinturas. Hoje em dia, sabendo que são falsificações, fica difícil acreditar que um dia alguém possa ter acreditado na qualidade artística delas. Mas nosso julgamento passa pela informação de que são falsificações.
Han van Meegeren. Ceia em Emaús, 1937. Óleo sobre tela, 130,5 x 118 cm. Museu Boijmans van Beuningen, Rotterdam.