Mental Abstrato

Mental Abstrato: os sons da diáspora na música urbana contemporânea

*Imagem: Raoos Irie

O Grupo Mental Abstrato (Oficial) trouxe seu hip hop jazz para a Casa Museu Ema Klabin em 21 de setembro de 2019 (assista ao espetáculo aqui). Formado pelos beatmakers Omig One, Calmão e Guimas Santos, o grupo lançou seu primeiro álbum, “Pure Essence”, em 2010 no Japão com grande reconhecimento internacional. O segundo álbum, “Uzoma”, foi gravado no Red Bull Music Studios SP, uma viagem sonora urbana e afro-jazzística, representando a música brasileira contemporânea, dos subúrbios de São Paulo para o mundo.

“Me desculpe, mas não resisti”, faixa do primeiro álbum do grupo, Pure Essence (2010), lançado no Japão

“O jazz é a mãe do hip hop” segundo o pianista Robert Glasper. A conversa entre os dois estilos é algo inevitável e tem se espalhado pelo mundo como um fenômeno da música urbana contemporânea. Os beats, mais diversos do que se pode imaginar, são reordenações de um inventário de gravações que tornam possível uma nova criação – além de novos e interessantíssimos questionamentos sobre leis de direitos autorais. Trata-se de um tipo de conhecimento e, portanto, um tipo específico de memória que transforma I Love Music de Ahmad Jamal (1970) em The world is yours (1994) do NAS ou Come Running to Me, de Herbie Hancock (1978) em Get dis Money do Slum Village (2009). Diversas técnicas são usadas nessas transformações, como o chopping (cortar) e o lifting (elevação).

Muitos músicos de jazz se aproximam dos novos músicos de hip hop como maneira de renovar sua música e inspiração. Embora tenha suas origens no final da década de 1970 e início dos anos 1980, o encontro dos estilos tem no lançamento do disco ganhador do Grammy “Doo Bop” (1992), do grande trompetista Miles Davis e do produtor Easy Mo Bee, um de seus momentos mais marcantes. 

O grupo Mental Abstrato interpreta “Já era uma vez”, música presente no álbum UZOMA

Os anos 1990 foram os tempos dourados do hip hop jazz. Muitos beatmakers e MC’s adotaram o estilo para se afastarem de sonoridades já consolidadas, o que tornou o estilo o maior representante do gênero musical urbano. A recursividade das levadas criadas pelos beatmakers se tornou ainda mais rica se pensarmos que o jazz é herdeiro do blues e o blues transgressor da teoria musical ocidental.

O jazz havia sido adicionado à paleta de produtores de hip hop, e sua influência continuou por toda a década de 1990. Podemos citar entre os principais álbuns do Illmatic (1994), do rapper NAS – que contou com produtores como DJ Premier, Large Professor, L.E.S., MC Serch, Q-Tip e Pete Rock – e “The Low End Theory” (1991), do grupo A Tribe Called Quest. Este último teve como single a faixa Jazz (We’ve Got).

O grupo Mental Abstrato interpreta “Jazzeira”, música presente no álbum Pure Essence

A confluência de ritmos, melodias e estilos, a livre improvisação e a criatividade no trabalho de musicistas engajados com a cultura hip hop marcam um gênero capaz de transitar por diversas estéticas musicais: seja por sua influência jazzística que dá o tom de sua fluidez interpretativa, pelos samples e pelas batidas (beats) que conduzem o desenvolvimento da música, ou mesmo pela utilização de recursos analógicos e digitais.

Com essas características, em 2014 Mental Abstrato & DJ Thira entraram no top 10 da BBC Radio London com a música Baião. Nessa obra, a improvisação dialoga diretamente com influências e temas musicais que vão de “Vybz Kartel, Marley and Devlin a Jackson do Pandeiro, Racionais MC’s e Buraka Som Sistema” (Far Out Recordings).

A confluência de ritmos, melodias e estilos, a livre improvisação e a criatividade no trabalho de musicistas engajados com a cultura hip hop marcam um gênero capaz de transitar por diversas estéticas musicais: seja por sua influência jazzística que dá o tom de sua fluidez interpretativa, pelos samples e pelas batidas (beats) que conduzem o desenvolvimento da música, ou mesmo pela utilização de recursos analógicos e digitais.

André Sanches e Thiago Guarnieri.

Improvisação sobre um trecho do “Theme de Yoyo” gravado em 1970 pela Art Ensemble of Chicago. A faixa faz parte do álbum “Les Stances a Sophie”, trilha sonora para filme homônimo dirigido por Moshé Mizrahi.

Mas qual o ponto de partida para a sonoridade do hip hop? Certamente o estilo tem algumas características marcantes: primeiro o ritmo, o famoso boom bap (batidas graves e agudas alternadas, como bumbo e caixa com acentuação em tempos pares); os samples, como uma saudação e reverência aos músicos de antigamente; e, principalmente, assim como o jazz, a mutabilidade e estrutura fluida.

Esta última característica permite que o hip hop seja antes uma essência, um conceito, e que tenha desenvolvimentos muito distintos a depender do lugar onde é feito. No Brasil, o gênero tem recebido influências do samba, do xote, da chamada “música brega”, entre outros. Dentre os encontros bonitos e inusitados, destacamos o de Emicida com Wilson das Neves, Originais do Samba com RZO, Arthur Verocai e Baco Exu do Blues, Karol Conká e Baianas de Ipioca, RZO e Trio Esperança, RZO e José Roberto, Marcelo D2 e Antônio Carlos e Jocáfi, Rappin Hood e Trio Mocotó.

Improvisação sobre um trecho do “Theme de Yoyo” gravado em 1970 pela Art Ensemble of Chicago. A faixa faz parte do álbum “Les Stances a Sophie”, trilha sonora para filme homônimo dirigido por Moshé Mizrahi.

Em seus 16 anos de história, o Mental Abstrato, além da mistura de jazz com hip hop, traz referência a sonoridades brasileiras. Tudo gira em torno dos sons da diáspora. 

“Khamisi” é a palavra em swahili, língua Banto (G40), e significa “nascido na quinta-feira”. É uma menção direta à Oxóssi, Rei de Ketu. Oxóssi é cultuado principalmente no Brasil e no Caribe. Segundo Omig One, a música Khamisi também nasceu numa quinta-feira, dia relacionado ao orixá.

Na África antiga, Oxóssi era considerado o guardião dos caçadores, pois cabia a eles trazer o sustento para a tribo. Hoje, Oxóssi é quem protege aquelas pessoas que saem todos os dias para o trabalho e, principalmente, está ligado às artes em geral: está presente no ato da pintura de um quadro; na confecção de uma escultura; na composição de uma música; nos passos de uma dança; nas misturas de cores; na escrita de um poema, de um romance, de uma crônica; desde o canto dos pássaros, da cigarra, ao canto do homem.

Okê arô!

Mental Abstrato interpreta “Khamisi”, faixa do disco UZOMA.

Característica marcante do hip hop e da música popular, as participações especiais e as releituras estão presentes no trabalho de Mental Abstrato. Aliás, as colaborações entre artistas são evidência do caráter relacional da música. No espetáculo realizado aqui na casa museu, o grupo homenageou Ronnie Foster, com a música Mystic Brew; e Marcos Valle com a composição que inaugura o LP instrumental de 1967 “Braziliance! Marcos Valle and his Music”, Os Grilos.

Omig One apresenta a formação do grupo. Mental Abstrato interpreta Mystic Brew de Ronnie Foster

Samambaia Rainha também nasce de um encontro. O trio conheceu a cantora Cláudya, e a partir de um rascunho composto por Guimas Santos chamado Remember a Black Samba, a composição ficou completa. Samambaia Rainha tem como inspiração direta a composição Salve Rainha de Cláudya com Chico Medori do álbum de 1979, “Pássaro Emigrante”. Samambaia Rainha nasce como continuidade a Salve Rainha em homenagem à cantora Cláudya, interpretada no álbum “Uzoma” com a participação da cantora.

Mental Abstrato interpreta “Samambaia Rainhai”, faixa do disco UZOMA.

Fundamental para o hip hop, os desenvolvimentos tecnológicos dos reprodutores mecânicos e digitais de músicas gravadas permitiram importantes mudanças estéticas na sonoridade dos grandes centros urbanos. A combinação de duas ou mais pickups reprodutoras (que conhecemos como toca-discos) e um mixer, permitiu aos DJ’s transformarem os aparelhos reprodutores em instrumentos musicais, criando novos contextos sonoros para a manifestação da cultura hip hop: pela dança, pela rima e pelos grafites.

Embora a música concreta já exista desde os anos 1940, ainda há quem considere a composição com sons previamente gravados uma arte menor. Mas as inovações tecnológicas motivaram desenvolvimentos técnicos que exigem dos músicos de hip hop tanta dedicação, disciplina e afinco como se espera de qualquer outro músico. E os resultados são performances impressionantes, como as do Grandmaster Flash ou Kid Koala.

Mental Abstrato interpreta “Noite Vazia”, faixa do disco UZOMA.

O Mental Abstrato utiliza o MPC ou Controlador de Produção MIDI. O equipamento foi desenvolvido pela Akai em 1988 e projetado primeiramente por Roger Linn como uma estação capaz de combinar uma série de funções sonoras, como batidas, samples, loops, sons sintetizados através de sequências sonoras curtas e longas, abrindo portas para novas possibilidades musicais, como o próprio hip hop e a música eletrônica.

J Dilla foi um dos produtores que mais se consagrou com beats produzidos com MPC. Desenvolveu uma nova maneira de compor através da MPC, tornando o controlador mais humanizado. Seu elaborado senso rítmico pode ser contemplado no álbum “Donuts” (2006). Sua MPC está hoje exposta como um artefato histórico no Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, em Washington, nos Estados Unidos.

Mental Abstrato interpreta Fall in Love, beat de J Dilla para o grupo Slum Village

Glauber Marques ressalta que a MPC é a base para as produções e composições do trio, como em James Bongô, penúltima faixa de “Uzoma”.

Mental Abstrato interpreta “James Bongô”, faixa do disco UZOMA.

Para o espetáculo em nosso auditório, Mental Abstrato (Oficial) se apresentou no formato quinteto instrumental:

Omig One: Percussão
Calmão: MPC/Programações
Guimas Santos: Baixo
Thiago Duar: Guitarra
Marcelo Monteiro: Sax e Flauta

Confira o trabalho do Mental Abstrato:

https://open.spotify.com/artist/01gqM3yHQTNQLid9Q65var

https://www.facebook.com/mentalabstratoficial/

https://www.instagram.com/mental_abstrato/

 

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André Sanches

Começou seus estudos musicais como contrabaixista em 2006. Teve a oportunidade de estudar nos maiores conservatórios de música popular do estado de São Paulo, como O CLAM (Centro Livre de Aprendizagem musical – Zimbo Trio), A EMESP (Antiga ULM), o Conservatório Dramático e Musical Dr. Carlos de Campos em Tatuí e a Faculdade de Artes Alcântara Machado. Atualmente cursa o bacharelado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Também é interessado e pesquisa as manifestações artísticas tradicionais, sobretudo as que despertaram o interesse dos folcloristas na primeira metade do século XX.

Thiago Guarnieri

Graduado em história pelo Centro Universitário FIEO, desenvolveu pesquisas sobre o movimento operário em Osasco e desenvolvimento de materiais didáticos para o ensino fundamental com enfoque em arte-educação. Pós-graduado em Gestão Cultural pelo SENAC com enfoque em políticas públicas e mapeamento cultural; atualmente cursa pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo com pesquisa voltada para a prática de musicalização infantil.

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