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Frans Post: o blogueiro do período colonial

*Imagem: Hóspede – Dilema com Guga Szabzon ao lado de Rebanho em Repouso de Lasar Segall, em exposição realizada na Casa-museu nos meses de junho e julho de 2018.

Ao terminarmos essa análise em uma das visitas, uma senhora, se viu espantada porque acabara de perceber que nenhum artista nasce simplesmente artista, é uma construção de muita pesquisa e trabalho

Como se dá a aproximação de obras de tempos, materiais e contextos distintos? Qual é o reflexo de uma obra contemporânea diante de uma coleção com características tão específicas como a que temos na Casa-museu Ema Klabin que contempla obras de épocas e culturas diversas, porém, seu alcance é até a arte moderna? Será que conseguimos através das imagens selecionadas descobrir um pouco sobre o processo desses artistas?

A estranheza do público diante de uma obra aparentemente tão distinta envolvendo tecido, bordado e palavra, como a de Guga Zsabzon e a pintura de Segall nos instigou a construir um percurso que foi além da aproximação espacial, formal das composições e dos tempos distintos das duas obras. Sentimos que a abordagem nossa, do educativo, poderia aproveitando a reflexão sobre pentimento trazida pelo curador Paulo de Freitas Costa, abordar o processo artístico desses e de outros artistas da Coleção de Ema Klabin.

Outras obras juntaram-se as de Segall e de Guga: “Vista de Olinda”, de Frans Post; “Natureza Morta com Limões e Xícara”, estudo de Renoir; e “A recusa de Arquimedes” de Sebastiano Ricci.

O que parecia a primeira vista para alguns, quando paramos em frente às duas obras “Dilema” e “Rebanho em Repouso”, tarefa inusitada, passou a se transformar durante a visita. Começamos através da análise das imagens observar, ora pela aproximação, ora pela diferença, os elementos da composição.

Qual o movimento do meu olhar quando observo as duas obras? Os visitantes passaram a traçar com o dedo o percurso de ambas e a perceber as linhas aparentes no desenho dos animais e a própria linha do bordado na obra “Dilema”. Perguntei para duas crianças: Quais os materiais a artista usou para realizar a obra? Responderam “pano, linha, cores amarelo, verde”. E na obra de Lasar Segall? Responderam: tinta, cores diferentes da obra Dilema, essa, apontou para “Rebanho em Repouso” as cores estavam mais misturadas. Perguntei se conheciam os materiais que eram feitas as telas? Responderam madeira e, com espanto, “pano”! Quando perceberam que a própria tela era feita de tecido, foi uma grande descoberta. Começamos a partir daí observar que existem muitos elementos que podíamos aproximar as duas obras.

Outra visitante passou a perceber também as nuances de cor das linhas da obra Dilema, apesar de ser uma linha de bordado, ela não era linear, como também não era a pintura de Segall, nela percebemos tons diferentes de marrom, preto e branco e na de Guga, amarelo, alaranjado.

Outro elemento muito potente da reflexão foi a percepção dos visitantes sobre as pinceladas aparentes da pintura de Segall, passamos a falar sobre o gesto desse artista e ao constatar que, na costura das linhas abstratas eram depositadas e costuradas a posteriori com uma linha transparente, a aproximação de ambas as obras passou a fazer muito sentido. Passamos a pensar qual seria esse movimento da artista sobre o tecido.

Uma senhora de Recife foi a única que desvendou esse mistério da costura, ela, costureira de profissão, enfatizou que “não é tão simples prender de forma tão certinha a linha”.

Voltando para a obra de Segall, passamos a observar a imagem do totem que continha a versão anterior da pintura “Rebanho em Repouso”. Após a análise anterior sobre a composição de Segall, percebi que a identificação dos visitantes, de que se tratava da mesma obra, com a diferença que agora não havia mais a figura retratada do próprio artista na pintura, era mais imediata.

Perguntei: “E aí, onde foi parar a figura humana?”, na mesma visita com as crianças, uma falou “Ora, ele apagou.”, continuei, “Apagou como?”, “Como se apaga a tinta a óleo na tela de tecido?”. O pai, olhando atentamente, “Eu consigo perceber um pequeno traço que parece a cabeça, olha aqui, perto da lua”. Pronto! Desvendou o mistério, a imagem estava lá só que estava escondida por novas camadas de tinta pintadas por cima.

Falei então, sobre o pentimento, que nada mais é do que “arrependimento”, uma palavra italiana que apontava uma mudança do artista, onde para apagar certos elementos da obra, precisava pintar por cima.

Passamos a falar sobre as escolhas, os processos para a criação de cada obra, sobre o tempo de confecção que difere em cada artista.

Frans Post era o ‘blogueiro’ do período colonial

Aproveitando esse momento passamos para a obra de Frans Post, primeiro percebemos os elementos da composição. Que lugar seria esse? Quem o artista selecionou para retratar?  Será que era fiel à realidade? Quando passamos a observar mais atentamente, perceberam que retratar escravos caminhando livremente, dançando pelas ruas, parecia um pouco estranho, e ainda, não seria possível, fazendo desenho de observação, o artista estar diante de uma cobra devorando um animal. Então concluímos que aquela imagem contava uma história, apesar de parecer “realista”, devia ter sido criada pela memória e imaginação do artista.

Mostrei outras imagens das outras três fases de Frans Post, que veio da Holanda para o Brasil com a missão de retratar as paisagens, esse lugar extravagante, quente e belo para as pessoas da Europa. Comparamos com outras imagens do artista, da primeira fase, enquanto estava no Brasil. Os visitantes repararam que as imagens pareciam mais iluminadas, mais realistas, as cores eram mais vivas.

Na segunda fase, quando o artista havia acabado de retornar para a Europa, os visitantes passaram a perceber que certos elementos se repetiam. Expliquei que depois de certo tempo retratando o Brasil, os clientes que compravam seus quadros queriam ver na pintura de Frans Post, mais o exotismo do Brasil Colonial do que a própria paisagem, daí o artista passou a colocar elementos curiosos como a cobra que percebemos nessa pintura, essa seria sua terceira fase.

Mostrei ainda, outras três imagens da Vista de Olinda, modificando apenas alguns elementos. Se tratando de pintura, podíamos afirmar uma maestria do artista, já que conseguia realizar de forma quase fiel a mesma estrutura das três imagens, mudando apenas alguns elementos da composição. Fazer, esse, mais possível na gravura do que na pintura.

Ao final dessa análise, um visitante, de forma descontraída, apontou. “Frans Post era o ‘blogueiro’ do período colonial, mostrou para o mundo apenas o que ele queria que vissem”.

Após esse momento de descontração, seguimos para a obra de Renoir, “Natureza Morta com Limões e Xícara”. Nem sempre quando o visitante entra na sala de jantar percebe essa obra, mas sempre, ao constatar que D. Ema Klabin tem um Renoir em sua casa, percebemos certo alvoroço do público.

Pedi licença aos visitantes para ler dois pequenos trechos, um de Renoir, citada no livro Arte Moderna, e outro, análise do próprio autor desse livro Giulio Argan, que fala sobre o fazer pictórico desse artista.

Penso que é preciso fazer a melhor pintura possível, eis tudo

Renoir

(...)a pintura não é meio é fim (...) Para ele não era a história das ideias expressas com a pintura; pelo contrário, ele procurava as soluções encontradas para os pequenos problemas essenciais do ofício pictórico: como combinar dois tons, obter uma transparência ou uma dissolvência, manter a pureza do timbre sem perder a unidade do tom

Giulio Carlo Argan

Após a leitura passamos a olhar a obra tentando identificar elementos das duas falas na pintura de Renoir. Passaram a perceber os diferentes tons que se dissolviam e se misturaram às figuras do fundo, tirando um pouco a perspectiva, falaram sobre essa dissolvência, que a pincelada era fluída e que a busca de Renoir era a própria pintura, não interessava necessariamente o motivo a ser retratada, a “natureza morta” tinha a mesma importância que uma paisagem ou outro motivo. Comparei com a imagem que tínhamos acabado de ver de Frans Post, porque esse sim, se preocupava com a mensagem da narrativa.

Perguntei, para finalizar essa leitura, se conseguíamos identificar a análise de Argan naquela pintura. Todos responderam afirmativamente. Pedi então, que olhássemos uma nova imagem que estava no tablete: mostrei um dos cadernos de Guga Szabson onde havia um desenho com a palavra Dilema. Algumas pessoas demoraram um pouco para perceber que se tratava da mesma artista e daquela primeira obra Dilema que havíamos visto no início da visita. A imagem do caderno é muito diferente da obra que havíamos visto. Aproveitei para retomar a questão do processo do fazer artístico. Quantas camadas a obra passa antes de ser concluída? Depois perguntei: Qual relação a imagem desse caderno poderia ter com a pintura de Renoir? Todos me olharam com dúvida.

Foi aí que revelei que aquela natureza morta também era um estudo. O espanto, em todas as visitas, foi unânime. Provoquei um pouco mais, No processo era possível enxergar a obra? Nós não havíamos identificado elementos da análise de Argan naquele estudo?

Voltamos a falar sobre as escolhas, sobre poética, sobre questões fundamentais na feitura de uma obra, seja ela, literária, visual ou musical e que independia da época. Todos ficaram muito intrigados com a provocação.

Ao terminarmos essa análise em uma das visitas, uma senhora, se viu espantada porque acabara de perceber que nenhum artista nasce simplesmente artista, é uma construção de muita pesquisa e trabalho.

Somente através do olhar atento conseguimos acessar outras camadas e entender que, o conhecimento do fazer artístico e o nosso próprio conhecimento a respeito de determinada obra (ou algo que nos dispomos a conhecer), é também uma construção. E ainda, se essa construção for coletiva, acredito que atendemos aos propósitos tratados inicialmente, observando, nem que sejam através de pequenos vestígios, esses processos.

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Rosi Ludwig

É educadora do Educativo Ema Klabin, graduada em Educação Artística e pós graduada em Arte na Educação: Teoria e Prática. Atua em educativos de museus desde 2006. Acredita na magia do encontro, na potência da escuta e nas diversas relações de conhecimento.