Cartografias, derivas e mapas afetivos

*Imagem: Mapa afetivo produzido em oficina Foto: Educativo Casa Museu Ema Klabin

Confira texto de Luiz Henrique Filho e vídeo com oficina para o programa Férias na casa museu, do Educativo da casa museu

Nas imagens abaixo, podemos observar o mapa de Bedolina, um petroglifo produzido por volta do ano 1.000 a.c. no Vale Camonica (Bréscia, Itália). Essa representação arqueológica mostra que o ser humano, desde muito tempo, sente a necessidade de registrar seus percursos. Hoje o mapa de Bedolina nos oferece apenas sugestões, mas sabendo que esse espaço representado foi um espaço percorrido, podemos atiçar a imaginação: O que essa iconografia nos conta? Para onde iam esses caminhos? As pessoinhas representadas são da mesma família? E os animais, simbolizam alimento, transporte ou perigo? Os zigue-zagues poderiam ser, talvez, rios e riachos? E os pontilhados, quem sabe, moradas ou plantações?

“Modificando os significados do espaço atravessado, o percurso foi a primeira ação estética que penetrou os territórios do caos, construindo aí uma nova ordem sobre a qual se tem desenvolvido a arquitetura dos objetos situados. O caminhar é uma arte que traz em seu seio o menir, a escultura, a arquitetura e a paisagem.” (CARERI, Francesco. Walkscapes, O caminhar como prática estética. p.27-28)

Agora observe outro tipo de representação do espaço. As gravuras abaixo fazem parte do livro “O Novo e Desconhecido Mundo: ou Descrição da América e das Terras do Sul […]” de 1671, do teólogo, explorador e missionário holandês Arnoldus Montanus. Como o título adianta, a publicação tinha o apelo de apresentar à Europa um imaginário do que seriam as Américas, já adentradas naquele momento pelo processo de colonização. Essas ilustrações parecem ser de alguém que esteve nestes lugares? Se atente ao que há de fantástico e ao que condiz com a realidade. Qual seria o interesse desse tipo de representação “oficial”?

No canto inferior esquerdo do mapa, podemos ver a grafia “Brasilia” acompanhada de dois homens – que por suas vestes devem se tratar de navegadores europeus – junto a um anjo que exibe um globo – alusão à Ciência. Ao chão, amarrados e rendidos, dois indígenas em suas indumentárias tradicionais, uma representação que remete à realidade daquele processo e o trata com normalidade.  Já na outra gravura uma imagem bem mais irreal: criaturas aladas e outros animais híbridos em uma atmosfera caótica e selvagem. Por muito tempo, essa imagem utópica da América do Sul foi exportada na aparência de “relatos” daqueles que por aqui passaram. Dessa forma, a fauna e a flora desse “novo mundo”, assim como os povos originários, suas crenças e costumes, foram apresentados como não-civilizados, na tentativa de justificar o processo de colonização desses territórios, vistos como bárbaros. Os instrumentos de representação do espaço adquiriram então uma atribuição histórica para além da orientação geográfica ou da simples descrição espacial, mas alimentaram por muito tempo uma visão de viés exploratório. Cabe mencionar que apesar da publicação ter o intuito de apresentar o “novo mundo” para os europeus, até mesmo incluindo mapas para melhor visualização, o autor Arnoldus Montanus nunca esteve pelas Américas…

Os contextos e narrativas de cada pessoa estão diretamente exprimidos em suas impressões sobre o que está ao redor, principalmente quando se trata do desconhecido. Em um salto secular, muito mudou na relação entre o homem e o espaço ocupado. Após as explorações territoriais, a ‘globalização’ e as novas tecnologias, nossos percursos foram sistematizados pelo mapeamento. É impensável sair de casa hoje sem saber o caminho que vamos percorrer na nossa própria cidade, ou muito menos em uma viagem, onde o espaço é desconhecido e inexplorado – recorremos aos mapas e guias de localização, quase já totalmente digitais. Contudo, no início do século XX, o dadá e o surrealismo deram uma nova atribuição aos mapas ao experimentar o caminhar como arte (ou melhor, antiarte), desenvolvendo assim o que os Situacionistas chamaram de “teoria da deriva”. Aquele que experimenta a deriva, deixa-se levar ao “acaso” de uma rota indefinida, se atentando aos efeitos emocionais e psíquicos que a geografia, o urbanismo e a arquitetura da cidade propõem. Nessa atividade, muitas vezes se sugere também a realização de mapas! Não mapas que indicam percursos, mas que tentam decifrá-los: porque esse caminho e não outro? Qual o motivo de ter evitado aquela rua? E as sensações, quais foram?

Tente pensar em um local da sua cidade em que você nunca esteve. O que vem à mente quando se pensa em uma caminhada sem direção certa? Explorar um lugar novo traz a sensação de medo ou liberdade? O elo do homem com a cidade, pautado pelos trajetos e intermediado por trabalhos, encontros, compromissos e lazeres, nem sempre permite a experimentação real das cidades. Então, os museus e instituições culturais se tornaram ambientes de potencialização dessa experiência, ao permitir a livre caminhada por um espaço lúdico de emoções e impressões, debates e silêncios, novos conhecimentos e sensibilidades.

Da próxima vez em que visitar um espaço que permita o contato com a arte, se permita uma deriva! Busque até mesmo, a depender do espaço, realizar o seu próprio mapa afetivo – ele é totalmente seu! Sinta-se livre para fazê-lo com desenhos, palavras, símbolos, o que vier à mente. Tente remontar a trajetória até esse momento – onde o seu dia começou? O que conhece sobre o lugar onde estava? É um lugar familiar? Se sim, descreva alguma memória que tenha de lá. Se não, quais detalhes mais chamaram a sua atenção nesse novo lugar? Como você chegou onde está agora? Fora os meios de transporte? Você fez alguma parte do trajeto a pé? Houve alguma dificuldade nesse caminho? Tente representar visualmente os sentimentos que teve durante esse tempo (frio, calor, sede, fome…). O que fez? Ouviu alguma música? Leu algum texto? Olhou o celular? Algo na paisagem te chamou a atenção? Algum acontecimento inesperado? Descreva detalhes que ficaram na memória. Agora, atente-se para o aqui e agora. Onde você está? O que está ao alcance da mão? O que pode ser tocado e o que não pode? Quais as diferenças e semelhanças de onde você veio para onde você está agora? Olhe ao redor e tente representar o máximo de coisas novas que consegue encontrar. Quais as suas impressões e sentimentos? Já esteve em um lugar assim antes? O que ele te remete? Tente buscar adjetivos.

Se tiver a oportunidade, compartilhe o seu mapa afetivo com outra pessoa, deixe-a tentar decodificar os desenhos, símbolos e descrições. Troque informações sobre os trajetos. Quais as semelhanças e diferenças? Vimos que não é de hoje que o ser humano se mostra capaz de representar suas relações com diferentes lugares. Você vai se surpreender com as coincidências e divergências que podem aparecer quando duas pessoas representam o mesmo espaço e, por meio dessas representações, o quanto podemos depreender do outro, de suas impressões, contextos e afetos.

“Enquanto a cartografia científica cria mapas com alto rigor de exatidão e precisão,
priorizando a descrição proporcional da realidade, a arte busca outras maneiras de
cartografar o espaço, introduzindo mais vida às características representadas.”
(BARBOSA, Gutemberg Soares. Diálogos Entre Cartografia E Arte: Desconstruções Cartográficas Na
Obra De Jorge Macchi. In: ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ, N. 39, P.139-156, 2016. p.149)

Bibliografia e referências

+ do blog:

Entrevista com Geovana

Nos bastidores do museu

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Educativo

O Educativo da Casa Museu Ema Klabin tem o compromisso com a mediação do público. Amplia as possibilidades de extroversão da Coleção Ema Klabin e temas correlatos à casa museu, ao mesmo tempo em que desenvolve uma reflexão crítica, visando torná-la um organismo vivo e em conexão com seu tempo.

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