*Imagem: Grafitti. Foto: Marco Gomes/ Wikimedia Commons
Confira texto de João Victor Casadei Amabile e vídeo com oficina para o programa Férias na casa museu, do Educativo da casa museu
Durante a exposição A Palavra Impressa, 1492-1671 na Casa Museu Ema Klabin foram expostos ao público 20 livros raros de sua coleção, que retratam as mudanças acarretadas com o livro impresso durante os dois primeiros séculos da impressão, trazendo assuntos que estavam em voga no Renascimento e o resgate de obras da Antiguidade Clássica, relatos das grandes navegações aos continentes inexplorados pelos europeus, e também debates que começavam a mudar o cenário religioso da época, como a Reforma Protestante. Para além dos temas da época, e muito antes da invenção da prensa de Gutenberg, a escrita sofre várias mudanças ao longo da história. A depender de sua região e da civilização que a utiliza, as mudanças ocorreram não apenas na maneira de representar uma ideia. Mas também muitas ganham uma fonética e variações estéticas no alfabeto que não estão visíveis apenas nos livros e podem ser vistas nas ruas das grandes cidades, mostrando o mesmo processo criativo e de representação de parcela da sociedade nas escritas urbanas. Mas como se dá o caminho de ligação das criações tipográficas e suas representações na escrita urbana?
Antes de existir a ideia de criação tipográfica, a humanidade e seus diferentes grupos civilizatórios tiveram que criar novos métodos comunicativos que abrangessem toda a complexidade que um povo carrega. Ao longo da história, suas adaptações, novos significados e o ganho da fonética foram carregando os elementos e características de um povo e sua cultura, até que, ao chegar nos dias de hoje, o alfabeto ocidental possa ganhar diferentes tipografias e criações de acordo com sua finalidade e até mesmo o direito de ocupação da cidade, em manifestos e na arte urbana. Vamos acompanhar aqui como se deu o processo da origem das diferentes escritas, do alfabeto romano, da tipografia, da escrita urbana, e qual a ligação entre elas.
Essa comunicação “escrita” está presente desde o período paleolítico, onde os desenhos rupestres eram uma maneira de representar o seu pensamento mágico. Por exemplo, um desenho de um animal e caçadores ao seu redor traria êxito em sua busca.
O desenho ganha um significado objetivo quando eles são transformados em pictogramas, que são desenhos e as imagens de um determinado objeto que realmente o apresenta de maneira literal. Como exemplifica Ladislas Mandel em sua obra “Escritas: espelhos dos homens e das sociedades”, a representação de um sol significa, literalmente, um sol. Esse foi o início da escrita em civilizações diversas. A mais antiga conhecida são os pictogramas Sumérios, na região da Mesopotâmia, por volta de 4.000 a.C, que originará a escrita cuneiforme, por volta de 3.000 a.C. Embora o uso dos pictogramas, para nós no século XXI, possa parecer rudimentar, foi essencial para o funcionamento dos diferentes setores da civilização, como a contagem de impostos e a agricultura. Além do mais, eles ainda são utilizados em conversas na palma da nossa mão. Talvez não venha à mente de primeira o que seria esse uso, mas tente abrir a aba de emojis no seu celular e veja o quão semelhantes são aos usos de pictogramas.
Outra civilização expoente de diversas criações foi a China, que se acredita ter sua primeira escrita por volta de 1.800 a.C, desenvolvendo pictografias com traços simples. A primeira caligrafia chinesa tinha uma grande ligação com o divino. Conhecida como chiaku-wen, ou grafia “osso e casco”, era chamada de sistema de adivinhação, pois esse sistema pictográfico servia para comunicação com deuses ou seus ancestrais, e posteriormente tinham essas mensagens gravadas em seus aparatos de bronze para poder gravar o que foi dito neste diálogo com o místico e não se perder na história.
O mandarim utilizado hoje se aproxima da caligrafia chen-shu, criada há aproximadamente 2.000 anos. A escrita caligráfica regular utiliza certos logogramas, interage com o espaço em branco e as linhas curvilíneas do pincel, e são interpretados com diferentes significados conforme seu contexto. O processo de escrita caligráfica ganha tons artísticos equivalentes à pintura, ultrapassando apenas o significado da comunicação. Vale destacar também que essa é a mesma escrita que servirá de inspiração aos futuros ideogramas japoneses e coreanos.
Em contraponto a esses nascimentos pioneiros da escrita, boa parte dos alfabetos conhecidos ao redor do mundo, tanto no Ocidente como em boa parte do Oriente, tem uma origem em comum: o alfabeto semítico setentrional, que para fins de melhor entendimento será tratado ao longo do texto como “alfabeto raíz”. Este alfabeto raíz, que surge na região nordeste do continente africano, também já foi encontrado no Afeganistão, Egito, Grécia e Índia. Dentre todos os alfabetos ao longo da História que se originaram dele, os mais famosos são o aramaico e fenício, que surgem em cidades-estados dessa região. Serão estes mesmos alfabetos que darão origem ao hebraico e também ao alfabeto grego como conhecemos. A escrita então ao longo do tempo sempre bebeu de fontes e influências passadas, seja no resgate de sua própria escrita em outros tempos, ou até mesmo de outras civilizações.
*Imagem: Alfabetos hebraico e fenício. Fonte: Wikimedia Commons
De forma semelhante, o alfabeto romano surge da escrita grega, levada ao império pela civilização etrusca, e assim nascendo o alfabeto que boa parte do mundo (em especial no Ocidente), passa a utilizar até os dias de hoje. Até agora, foi relatado cronológica e historicamente o surgimento dos mais diversos tipos de escrita e a sua importância. Mas e a estética das letras, como se dá? Por que a letra “A” é feita desta maneira? E qual o surgimento da letra minúscula?
Assim como qualquer produção humana reflete o que está sendo vivido em seu próprio tempo, a estética e a função das letras também carregam consigo este papel. As lapidares – grafadas em pedra – deram origem às letras maiúsculas do alfabeto romano e é possível que as minúsculas de traços arredondados, grafadas em pergaminho e papel, reflitam as cúpulas arredondadas que caracterizam a arquitetura romana. O trabalho sobre as letras romanas minúsculas ao longo do tempo foi sendo caracterizado pela fácil e rápida reprodução em massa, e fácil identificação nas diferentes letras, levando a ideia de reprodução em massa e leitura mais rápida e fluida.
A produção não se mantém apenas em um modelo único estético. O surgimento de diferentes tipografias ao longo do tempo são representações daquele dado momento. A tipografia gótica, com seus traços mais largos e altos, representa também nos seus detalhes e serifas o peso e a imponência da arquitetura gótica, refletidos na maioria das vezes nas monumentais catedrais em grande ascensão no período de alta Idade Média. Foi também o primeiro modelo de matriz tipográfica da famosa prensa de Gutenberg, que esteve presente nos primeiros livros impressos, reproduzindo similaridades aos livros manuscritos da época. Outro exemplo que vale a pena ser citado é a criação da escrita em itálico feita por Francesco Griffo, um tipógrafo italiano que muitas vezes trabalhou em parceria com um dos livreiros mais famosos do começo do século XVI, Aldo Manúcio.
Aldo Manúcio foi pioneiro em uma nova formatação do livro impresso, prossibilitando uma encadernação mais barata com um impresso de tamanho reduzido e uma diagramação mais semelhante ao que vemos hoje,ele foi responsável pela popularização dos livros, além de uma tipografia utilizada até os nossos dias. Junto com seu tipógrafo, Francesco Griffo criou a tipografia em itálico de forma que se assemelhasse às letras escritas à mão. Essas inovações foram muito populares entre os estudantes da época, já que a tipografia em itálico causando maior proximidade com suas próprias produções escritas, além do baixo custos dos impressos e um tamanho reduzido de livros que facilitava o transporte pelos estudantes.
Partindo do processo tipográfico de diferentes sociedades ao longo da história, seja nos livros ou em qualquer outra superfície, na contemporaneidade há conjuntos de elementos de escrita, dentre os considerados formais e não formais, que refletem tanto o uso da pictografia como a desconstrução da escrita, como os diferentes tipos de escrita urbana, como o graffiti e a pixação, essa última nascida exclusivamente no Brasil.
A escrita em público por pessoas que desejavam marcar a sua presença no local em que passavam, conta com histórias anteriores ao graffiti que conhecemos hoje em dia, que tem o seu surgimento nos subúrbios da Philadelphia e Nova York na década de 70, e ganha notoriedade como manifestação com o surgimento do hip-hop. O grafiteiro criava a sua tag, ou seja, o codinome que seria escrito para representá-lo, e assim o espalhava pela cidade, o estampando nos prédios abandonados e, principalmente, nos trens que circulavam pela cidade. Ganhando cores e novos estilos de letra, como o tradicional throw-up, expunham para a população os indivíduos que a sociedade invisibiliza por meio de sua identidade artística no graffiti.
Já a expressão conhecida como pixo é originada em São Paulo, como manifesto de grupos periféricos contra diversas situações políticas e sociais da cidade, entre elas o processo hostil de higienização. Por isso aparece com uma estética agressiva, escancarando os descontentamentos, principalmente em lugares de maior trânsito da cidade, como seu centro. No ano de 1968, as primeiras pichações surgem com ataques à ditadura militar, com frases como “Abaixo a Ditadura”, “Punição aos Torturadores” e “Fora Militares”, entre outras. As inscrições não tinham preocupação estética. Não havia o código, e era claro, para qualquer pessoa alfabetizada, que se buscavam apenas passar uma mensagem curta e clara.
A criação das tags junto a estética do “pixo” utiliza uma grafia com letras de difícil compreensão, alongadas e mais retas. Essa estética surge no fim da década de 80 inspiradas no movimento punk e na comunicação gráfica dos discos de rock da época. Essa tipografia, por sua vez, era inspirada nas runas futhorc, que também serviram de fonte para as diferentes estéticas do “pixo”.
Outras maneiras de marcar os locais públicos das cidades foram surgindo ao longo do tempo, como os “lambe-lambe”, impressões em folhas de seda ou em sulfite que são coladas em muros, portões e viadutos. Os “stickers” surgem na década de 90 nos EUA, e chegam no Brasil no início dos anos 2000. Eles podem ser feitos em gráficas ou à mão, com adesivo vinílico e um marcador permanente. Assim, sua TAG também pode ser feita e distribuída como um adesivo que resiste ao sol, à chuva e outras intervenções, e que é colado geralmente em espaços menores, como postes, placas de trânsito e semáforos.
O propósito de comunicação existente já nas primeiras escritas e a preocupação estética e de formas das letras estão presentes nas diferentes sociedades e civilizações ao longo da História, com o passado inspirando as criações do presente e os reflexos da formação dos elementos daquela sociedade. E com a escrita urbana, em suas diferentes categorias ao longo dos anos, não foi diferente. A lógica de ocupação do espaço urbano está geralmente ligada a deixar a marca de sua presença naquele local, mas muito acompanhada também como um grito de manifestação de grupos invisibilizados e jogados para as periferias. Isso fica visível com a integração do graffiti ao movimento hip-hop e a pixação no Brasil denunciando o projeto higienista de gentrificação do centro da cidade, ocupando a verticalização do espaço. Tanto as formas de intervenção no cenário urbano como a escrita de um livro têm o poder de transmitir histórias e ideias de um grupo diferente de pessoas, a partir de um suporte convencional ou não. Mas a maior relação está ligada na ideia da inscrição, do registro por meio de uma tipografia que, às vezes, é compreensível e outras, não. Nas paisagens urbanas, muitas vezes em viadutos, becos e paredes, também encontramos formas de expressão que refletem os pensamentos e sentimentos dos artistas que criam.
Referências
MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. Rosari, 2006.
Philip B. Meggs, Alston W. Purvis – História do Design Gráfico. Cosac Naify 2009.
SCHNITMAN, Matilde Eugênia. A arte sutil da tipografia. em Comunicação plural [online]. Salvador: EDUFBA, 2007. 167 p. Saladeaula series, nº4. ISBN 978-85-232-0442-6.
FILARDO, Pedro Rangel. A pichação (tags) em São Paulo: dinâmicas dos agentes e do espaço. 2015. Dissertação (Mestrado em Habitat) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. doi:10.11606/D.16.2016.tde-07032016-152052. Acesso em: 2024-12-20.
PIXO. Direção: João Wainer e Roberto T. Oliveira. Produção: Roberto T. Oliveira. Roteiro: João Wainer. Fotografia de João Wainer. São Paulo: TXNOW, 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=skGyFowTzew. Acesso em: 20 dez. 2024.
WAGNER TOSKO (GRAFITE) | Começo de Conversa #26. [S. l.]: COMEÇO DE CONVERSA, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AWlVh-xykJQ. Acesso em: 20 dez. 2024.
WALL WRITERS. DOCUMENTAL GRAFFITI con SUBS en ESPAÑOL. Direção: Roger Gastman. [S. l.: s. n.], 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wyZmP_nngNo. Acesso em: 19 jan. 2024
+ do blog:
Educativo
O Educativo da Casa Museu Ema Klabin tem o compromisso com a mediação do público. Amplia as possibilidades de extroversão da Coleção Ema Klabin e temas correlatos à casa museu, ao mesmo tempo em que desenvolve uma reflexão crítica, visando torná-la um organismo vivo e em conexão com seu tempo.