*Imagem: Registro do Tardes Musicais com Osni Ribeiro – São Paulo Caipira. Fotografia de Pepe Guimarães (f14fotografia).
É quase hora do almoço quando toca o telefone. Do outro lado da linha o Thiago Guarnieri, representando a Fundação Ema Klabin. Nos apresentamos e o convite chega com uma certa pompa. A indicação para o convite é do Prof. Dr. Ivan Vilela, músico, pesquisador, e professor de história da MPB e Viola Brasileira na USP – Universidade de São Paulo. A alegria pelo convite, endossado pelo Ivan, traz também uma proporcional responsabilidade para embalar o projeto.
Identidades Paulistanas, desenvolvido pela Fundação, procura mapear o DNA identitário do paulistano. As influências que recebeu, como a gente detecta e onde reconhece essas influências.
Desafio aceito, o passo seguinte é organizar ideias, pensamentos e sentimentos. Prospectar cenários, colocar no papel o roteiro, os caminhos e juntar tudo aos sons para adornar musicalmente os ares da Casa Museu.
Da provocação nasce o São Paulo Caipira, que coloca no mesmo balaio curiosidades e pensares que carrego pela vida. O primeiro recorte foi esse, que levamos ao palco e cujo texto apresentamos como forma de anunciar e situar leitores e ouvintes.
O projeto original que apresentamos no palco da Casa trouxe ainda expectativas de novos desdobramentos, de um olhar ampliado para toda a região de abrangência da cultura dos caipiras. Questionamentos sobre a música caipira de ontem e de hoje.
Onde está essa música?
O que a define?
Quais suas principais características?
O que nos aponta o futuro?
Um tema que parece muito simples, mas que quando paramos para olhar, sempre nos descortina novos horizontes…
Identidades Paulistanas
Numa via de duas mãos, a população de São Paulo seguiu da capital para o interior, em tropas e bandeiras e mais tarde em busca de novas oportunidades, de trabalho no campo, nas lavouras de café e outras. Constituiram-se nos rincões caipiras novas famílias. Afloraram novas culturas.
A via de retorno acentua-se com o êxodo rural e o fortalecimento da indústria que ensejou o retorno dessas populações interioranas para a capital, associado aos movimentos migratórios de outros estados e regiões transformando a cidade de São Paulo no maior centro populacional do país. Uma metrópole onde a modernidade convive com o tradicional, onde os povos de etnias diversas, de culturas e hábitos diferentes, de classes sociais contrastantes, encontram-se na mesma rua.
São Paulo Caipira traz, no formato de canção, as crônicas de campo e cidade, as paisagens e os sentimentos dos homem comuns, recortes de tempos passados que confluem aos dias de hoje.
Da vila de São Paulo de Piratininga – peixe seco – alusão ao primeiro povoamento afastado do litoral, até a boca do sertão, morada dos Caipiras – peixes do mato – onde caboclos, cafuzos e mamelucos deram protagonismo ao amálgama cultural de todo o povo de São Paulo – paulistas e paulistanos.
A identidade de um povo consolida-se com o tempo, em aprendizados, trocas, emoções, vivências, sensações e sentimentos. E são os sentimentos que movimentam, conduzem a sinergia dessa construção, catalisam isso tudo e, sem que a gente perceba, depositam os conteúdos em nosso inconsciente. Dos sentimentos que incutiram à identidade paulistana elementos da cultura caipira podemos apontar um deles como fundamental: a saudade.
Muitas vezes a saudade do que nem vivemos, mas que transpira, paira no ar, no seio da família, nas rodas de amigos.
E assim começa o nosso caminho, embalado pela saudade, para descobrir a cidade que embala cada um de nós.
Sodade é uma dor que dá mas num é dor de doê
é vontade de alembrá, é vontade de esquecê
é dor de dente machuca, mas onde dói num se vê
e a gente pega e cutuca pra num deixar de doer.Cornélio Pires
São Paulo Caipira
A saudade é o sentimento que sustenta a alma caipira dentro da cidade de São Paulo. Porém, os elementos objetos dessa saudade constituiram-se cotidianamente, década após década, pela troca de informações entre os habitantes da capital e os do interior.
O primeiro fluxo acontece de forma exclusivamente oral, recolhido e transportado em lombo de burro e canoa, por tropeiros e bandeirantes. A partir de 1870, com o início do transporte ferroviário, esse fluxo se intensifica, assim como a velocidade com que as influências incorporam-se aos cotidianos das pessoas.
Na década de 20 do século XX, o surgimento do rádio modifica radicalmente os processos de transmissão de conhecimento. Com os meios magnéticos de gravação, o que era transmissão oral passa a ter registros sonoros que, aliados à imprensa, permitem recortes históricos de fatos e épocas passadas. Depois vieram as rodovias, a televisão, os computadores, a internet, enfim, vários avanços tecnológicos que embaralharam o jogo desses processos de construção de identidade sócio-cultural rotineira dos séculos passados.
E a cidade de São Paulo transformou-se num grande polo irradiador e receptivo.
Se a capital paulista acolhe, integra e assimila populações e culturas, a música caipira paulista, por sua vez, acolheu, integrou e assimilou influências estéticas e musicais conforme sua consolidação como estilo musical.
A célula original dessa música, mistura das violas portuguesas com a rítmica indígena e cantos litúrgicos populares, foi assimilando elementos da cultura negra, dos imigrantes, das regiões fronteiriças à Paulistânia e depois até de outros países.
Um marco importante da conexão caipira com a capital é o ano de 1910, quando o jovem Cornélio Pires organiza folguedos caipiras no Colégio Mackienze.
As duplas de cantadores, catireiros, curueiros apresentando-se num colégio da elite paulistana representaram mais um passo para a divulgação da cultura caipira, que começou a ser esboçada por meio das pinturas de Almeida Jr., atingindo o climax quando, novamente Cornélio, produz os primeiros registros fonográficos dessa música do interior, no final da década de 20. Os discos, custeados por Cornélio, também marcam a primeira produção independente da indústria fonográfica brasileira.
Com o rádio chegando aos mais distantes rincões, o disco registrando as criações e as porteiras abertas para os caipiras adentrarem na capital, a semente estava lançada.
De lá pra cá romperam-se as fronteiras. Os caipiras apropriaram-se das ondas do rádio, auditórios, programas. Dirigiram gravadoras e consolidaram a inserção da música caipira no âmago da alma paulistana.
Veio a era de ouro dos festivais da MPB e alguns compositores voltaram seus olhares e ouvidos para esse rico manancial e começaram a incorporar elementos da música caipira em suas obras. Podemos encontrar exemplos em canções célebres como Ponteio (Edu Lobo/Capinam), A Estrada e o Violeiro (Sidney Miller), Disparada (Theo de Barros/ Geraldo Vandré). Essa fusão veio pra ficar e ampliar ainda mais o espectro da música caipira inserida em outras vertentes musicais, passando de gênero que recebia influências a gênero de influência direta no trabalho de muitos artistas.
E veio o Som Brasil – hoje Sr. Brasil, o Viola Minha Viola e muitos outros programas do gênero.
E fizeram história, com a vida e canções, Cornélio Pires, Raul Torres, Carreirinho, Angelino, Tião Carreiro, Teddy Vieira, Inezita, Serrinha, Tonico e Tinoco e toda a turma caipira…
E continuamos fazendo história com os mestres Rolando Boldrin e Renato Teixeira e uma grande e expressiva diversidade de caipiras contemporâneos – Paulistas e Paulistanos.
As Trilhas do Caminho
Os caminhos para contar essa história no palco eram muitos e diversos. Uma série de espetáculos talvez fosse mais oportuna para tal. Nossa missão era apresentar esses caminhos e conduzir a platéia para esse reencontro com a identidade caipira que se encontra dentro de cada um.
Iniciamos com os caipiras fazendo odes à cidade – Ê São Paulo, sucesso do Alvarenga e Ranchinho, seguida da Marcha do Quarto Centenário, composta pelo Mario Zan, imigrante Italiano, radicado na capital e autor de Chalana, um dos maiores clássicos da música caipira, também devidamente utilizado para ilustrar a nossa apresentação.
1- Marcha do Quarto Centenário, composta por Mário Zan
2- Chalana, composta por Mário Zan e Arlindo Pinto
Após a abertura solene trouxemos um pouco de saudade, muito bem definida na Sodade poética do Cornélio Pires. Tanto a saudade da vida de outrora na cidade, extremamente afinada com os sentimentos caipiras, como a saudade dos migrantes do campo para a cidade. A nostálgica Lampião de Gás, retratando uma São Paulo de antigamente e as bucólicas Saudade de Minha Terra e Recado, contando que o interiorano não esquece suas raízes e a vontade de voltar.
3- Lampião de Gás, composta por Zica Bergami
4- Poema Sodade de Cornélio Pires
Saudade da Minha Terra, composta por Belmonte e Goiá
5- Recado, composta por Arlindo Pinto e Anacleto Rosas Jr.
Não poderiam ficar de fora as crônicas, uma característica marcante da música caipira, registros sobre o cotidiano do paulistano de outrém, contidas no Bonde Camarão e na poesia de abertura de Paulistinha, essa aglutinando crônica e saudade.
6- Bonde Camarão, composta por Mariano e Cornélio Pires
Nesse trajeto pós-abertura iniciamos também um processo de vincular artistas cujas histórias misturam-se a história da cidade e da música caipira como Inezita Barroso e Rolando Boldrin.
7- Adaptação da poesia “A minina dos óio do Brasil” feita por Rolando Boldrin, de autoria de Nhô Bento
Paulistinha, composta por Nogueiras Santos e Barroso
A dama da música caipira, Inezita, ainda aparece numa releitura de Ronda – primeira música gravada por ela e também primeiro registro da canção. Esse trecho do caminho mostra o encontro do Paulo Vanzolini – um dos compositores paulistas mais arraigados que conheci – com a musa caipira.
8- Ronda, composta por Paulo Vanzolini
Autor de Ronda, que enseja o encontro de Inezita com o disco, Vanzolini também é o responsável pelo recolhimento de uma das mais belas obras do cancioneiro popular – Cuitelinho.
9- Cuitelinho, cancioneiro popular – recolhida por Paulo Vanzolini
Como numa roda de samba, uma coisa puxa a outra e chegamos em Adoniran Barbosa, personalidade ímpar da música e do samba paulistano cujo linguajar lítero-musical tem claras conexões com a prosódia caipira. Saudosa Maloca trouxe um ambiente ítalo-paulistano-caipira para o repertório.
10- Saudosa Maloca, composta por Adoniran Barbosa
Assim como o samba, outras vertentes musicais acabaram bebendo da fonte límpida e refrescante do caipirismo. Novamente em destaque nos palcos da capital em razão do projeto Nós do Rock Rural que reúne contemporâneos e notáveis do gênero, revisitamos Casa no Campo, que composta pelo carioca Zé Rodrix e pelo mineiro Tavito, trouxe para a identidade de todos os brasileiros um pouquinho do sabor do campo.
11- Casa no Campo, composta por Tavito e Zé Rodrix
Senti ainda que faltava apresentar um pouco de mim e do meu trabalho, Osni Ribeiro, um caipira de hoje. E mostrei um pouco do meu jeito de contar a história do boi pelo Brasil, em Quadrinhas de Boi. Cantei um pouco de onde eu vim em forma de poesia com a centenária Tristezas do Jeca – eleita a música caipira n. 1 do século XX – homenageando o seu autor Angelino de Oliveira e também a serra onde nasci.
“Eu nasci naquela serra”
11- Quadrinhas de Boi, composta por Osni Ribeiro, Tonico Rosa e Gustavo Rosa
12- Tristezas do Jeca, composta por Angelino de Oliveira
A viola é o símbolo da arte, da música que me acompanha pela vida. Uma Viola Santa que consola, que desperta, que reflete e silencia. Que ora em tributo a ídolos, que ainda com a gente, resgatam o orgulho de ser caipira e nos apontam bons caminhos. Oramos em Romaria com Renato Teixeira e mais uma vez constatamos que o mestre Rolando Boldrin tem toda a razão em dizer que “a viola fala alto no meu peito”.
13- Viola Santa, composta por Osni Ribeiro
14- Romaria, composta por Renato Teixeira
15- Vide Vida Marvada, composta por Rolando Boldrin
Para encerrar, cantamos a alegria do convite para levar a nossa cantoria em Peito Sadio e em clima de arrasta pé anunciamos nossas despedidas com fé em São João Pedro.
Até a próxima cantoria…
16- Peito Sadio, composta por Raul Torres e Rubens Filho
17- São João Pedro, composta por Osni Ribeiro
- Eh… São Paulo (Alvarenga / Ranchinho)
- Marcha do Quarto Centenário (Mario Zan)
- Chalana (Mário Zan / Arlindo Pinto)
- Siriema (Mario Zan / Nhô Pai)
- “Sodade” (Cornélio Pires) poesia
- Lampião de Gás (Zica Bergami)
- Saudade de Minha Terra (Goiá / Belmonte)
- Recado (Anacleto Rosas Jr / Arlindo Pinto)
- Bonde Camarão (Cornélio Pires / Mariano)
- “A minina dos óio do Brasil” (Nhô Bento) poesia adaptada por Rolando Boldrin
- Paulistinha (Nogueira Santos / Barroso)
- Ronda (Paulo Vanzolini)
- Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa)
- Casa no Campo (Tavito / Zé Rodrix)
- Arredores (Osni Ribeiro)
- Paixão Violeira (Osni Ribeiro)
- De Onde Eu Vim (Osni Ribeiro) poesia
- Tristezas do Jeca (Angelino de Oliveira)
- Romaria (Renato Teixeira)
- Vide Vida Marvada (Rolando Boldrin)
- Peito Sadio (Raul Torres / Rubens F. Bueno)
- São João Pedro (Osni Ribeiro)
Osni Ribeiro
Osni Ribeiro é violeiro, compositor e apaixonado pela música e cultura caipira. Com mais de 30 anos de carreira, está lançando novo álbum – Arredores – onde mescla trabalhos autorais e clássicos da música raiz e desenvolve projetos de pesquisa e difusão da música regional paulista, inclusive a música caipira.
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