narrativas

Tecendo novas narrativas

*Imagem: Figura de Relicário. Grupo Cultural Obamba. Gabão, séc. XX. Madeira entalhada, metais em lâminas, 47,5 x 25,5 x 6,4 cm ap.

Provocar, instigar novos olhares, novas camadas, novas narrativas sobre a Coleção de Ema Klabin tem sido o desejo e meta da equipe do Educativo ao longo dos anos. Aproveitando a temática do museu em 2020: “Outras narrativas”, percebemos a oportunidade de compartilhar com o público nossas experiências durante algumas das visitas realizadas em 2019.

 

A série “De olho na coleção” é composta por visitas onde o educador traça um recorte específico, trazendo uma lente de aumento para algumas obras e propondo um tema dentro da coleção. Neste texto, abordaremos a visita “Representações e protagonismos da população negra na coleção de Ema Klabin”.

“Nas narrativas africanas, em que o passado é revivido como uma experiência atual de forma quase intemporal, às vezes surge certo caos que incomoda os espíritos ocidentais. Mas nós nos encaixamos perfeitamente nele. Sentimo-nos à vontade como peixes no mar onde as moléculas de água se misturam para formar um todo vivo.”  (Bâ, 2013, p.12)

A citação de Hampâté Bâ nos fala de como as Áfricas entendem as narrativas, sem fazer uma distinção de passado, presente e futuro: todas as histórias fazem parte de cada indivíduo a todo momento. Empresto as palavras de Hampâté para fazer uma analogia sobre o trabalho do educador e as propostas mediadas nas visitas. Cada momento é único e vivido como se pudéssemos provocar em nós e no outro, por meio das peças de épocas distintas, novas narrativas construídas de forma coletiva, onde os visitantes e suas experiências individuais transformam esse tempo e espaço em momentos únicos. Hampâté trata nessa fala, em específico, da tradição oral; nós das diferentes narrativas possíveis que traçamos ao revisitar uma obra.

A ideia inicial do projeto partiu da educadora Rebeca Ramos e o roteiro da visita foi desenvolvido por toda a equipe do educativo da casa-museu. De modo geral, as obras abordadas foram: Vista de Olinda de Frans Post, obras do Mestre Valentim, Di Cavalcanti e o conjunto de peças do continente africano. Durante as visitas, optamos por utilizar, também, materiais de apoio que serviram como elementos de provocação e reflexão junto às obras.

Com o intuito de atingir diferentes públicos, essa visita foi pensada para o público espontâneo, principalmente para pessoas que frequentam a casa-museu aos finais de semana. Dessa forma, conseguimos atingir pessoas de diferentes localidades, perfis, faixas etárias e interesses.

Para mim, todo o processo foi um grande desafio porque sabemos o quão complexo é para uma pessoa branca conduzir uma visita que trata sobre protagonismo e representações da população negra. O caminho em que me senti confortável para fazê-lo foi, a todo momento, contextualizar de onde partimos para realizar as discussões com o público, sempre trazendo a fala dos pesquisadores e das suas fontes, para provocar ou trazer uma informação específica. Foi fundamental me colocar como essa pessoa que também precisa ser vigilante a todo tempo para não reproduzir preconceitos que possam vez ou outra aparecer no modo como falamos ou nos expressamos – um caminho mais honesto para tratar desse assunto tão atual e delicado.

Senti que essa postura fez diferença na abordagem durante as visitas, já que algumas pessoas nos grupos colocaram-se de início mais fechadas e resistentes, como se quisessem saber “Como essa pessoa branca vai tratar desse assunto?”. Ao final, se permitiram “entrar” na visita, mostrando-se surpresas pelas questões abordadas e algumas salientaram o quanto foi importante a forma como tudo foi conduzido.

Outras pessoas disseram que sequer haviam parado para pensar o quanto de discriminatório há no fato de considerarmos Mestre Valentim “mestre” e não artista, título reservado aos artistas europeus do mesmo período. As obras do continente africano, por sua vez, nos permitiram observar as diferentes etnias presentes em cada país, motivo de assombro para todos.

Reitero para afirmar que nada seria possível se, primeiro, não houvesse a inquietação de se descobrir novas narrativas sobre a coleção, como também, o fato de termos disponíveis pesquisas sobre as peças, principalmente do continente africano. O trabalho de pesquisa de Luciara Ribeiro, disponível em nosso site, para mim, foi fundamental para entender o contexto de aquisição de algumas peças pelo Ocidente, e ainda descobrir outras camadas sobre as peças do continente africano da coleção.

Dessa forma, pude discorrer sobre o tema, e me trouxe muita segurança para provocar e refletir sobre as questões levantadas por nós.

De modo leve, acredito que conseguimos traçar um caminho muito produtivo e coeso sobre o que poderia ser discutido durante a visita, desvelando outras narrativas e despertando novas inquietações sobre o tema.

Referências Bibliográficas

BÂ, Amadou Hampâté. Amkoullel, o menino fula. 3ª ed. São Paulo: Palas Athena: Acervo África, 2013.

GRINSPUM, Denise. Mediação em museus e em exposições: espaços de aprendizagem sobre arte e seu sistema (2014). Revista eletrônica Revista GEARTE, v.1, n. 2. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/gearte/article/view/52606/32633. acesso em: 25/03/2020.

LEITE, Fábio. A questão ancestral: África Negra. 1ª ed. São Paulo: Palas Athena: Casa das Áfricas, 2008.

RIBEIRO, Luciara Santos. Reflexões e Considerações a respeito da formação e perfil da Coleção Africana da Fundação Cultural Ema Gordon Klabin. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em História da Arte – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História da Arte, 2014.

SALUM, Marta Heloisa (Lisy) Leuba. África: arte híbrida da mais penetrante matéria e concreta essência São Paulo: Fundação Cultural Ema Gordon Klabin, 2017.

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Yolanda Penteado – Narrativas da Coleção

Rosi Ludwig

Rosi Ludwig é educadora do Educativo Ema Klabin, graduada em Educação Artística e pós graduada em Arte na Educação: Teoria e Prática. Atua em educativos de museus desde 2006. Acredita na magia do encontro, na potência da escuta e nas diversas relações de conhecimento.