O que é uma casa-museu?

O que é uma Casa-Museu?

*Imagem: Pepe Guimarães (f14fotografia)

A casa é o centro geométrico do mundo (...) tudo é tão penetrado de afetos, móveis, cantos, portas e desvãos que mudar é perder uma parte de si mesmo, é deixar para trás lembranças que precisam desse ambiente para reviver.

Ecléa Bosi (1)

A Casa-Museu Ema Klabin é uma instituição cultural sem fins lucrativos criada para preservar, pesquisar e divulgar a coleção de arte reunida durante aproximadamente 35 anos por Ema Gordon Klabin.

Essa coleção está abrigada em sua antiga residência, na qual ela morou entre 1961 e 1994. Hoje, a Casa-Museu, além das ações de preservação e pesquisa, também promove e divulga ações de caráter cultural, artístico e científico, através de uma programação voltada a todos os públicos. 

Mas… o que é uma “casa-museu”? O que difere uma casa-museu de qualquer outro museu? Afinal, todos os museus, independentemente de sua tipologia, expõem obras e artefatos, de suas próprias coleções ou em regime de empréstimo de outras coleções, certo? E também oferecem uma programação cultural aberta ao público! 

Será que conseguimos identificar só pelo olhar ou durante a visita que estamos em uma Casa-Museu? Se você não souber absolutamente nada sobre o museu que está entrando, será capaz de dizer: “Claro! Essa é uma casa-museu!”? 

Nem sempre uma casa-museu tem um projeto curatorial e expográfico que preserva a casa e seus cômodos em sua ambientação original. Para citar um exemplo, a Casa Mário de Andrade, que faz parte da Rede de Museus-Casas Literários de São Paulo se dedica a preservar o caráter multifacetado da personalidade de Mário de Andrade; apesar de apresentar objetos e documentos que pertenceram a Mario de Andrade, a casa não mantém preservados os cômodos originais. Da mesma forma, a famosa Casa das Rosas, cujos cômodos são espaços para exposições temporárias ou ações de sua programação. A Casa Guilherme de Almeida, por outro lado, busca preservar alguns cômodos com os objetos, mobiliário e obras de arte que pertenceram ao casal Guilherme e Baby de Almeida, de forma a manter um registro de casa, porém adequando os espaços às necessidades de visitação. 

É interessante lembrar que o museu é uma instituição que nasceu a partir de coleções particulares. Durante as Cruzadas a recolha de objetos raros e sagrados fez da Igreja Católica, por exemplo, uma detentora de relíquias que configuraram grandes coleções. Mais tarde as Grandes Navegações motivaram o colecionismo de espécies naturais: flora, fauna, minerais e todos elementos vistos como exóticos, além de objetos científicos, artísticos e outras maravilhas de países que eram desconhecidos até então,  compondo assim os  Gabinetes de Curiosidades: coleções reunidas nas residências e palácios de seus colecionadores em cômodos específicos e abertos à apreciação de seus convidados. 

É apenas com os ventos da Revolução Francesa e seus ideais republicanos que as coleções privadas passam a ser abertas a todos e assim, é criado o primeiro museu público: o Museu do Louvre (o Museu do Louvre é o primeiro grande museu, porém o mais antigo é o Ashmolean Museum, aberto em 1683 na Universidade de Oxford).

Mas, se as coleções privadas originaram os museus públicos, isso nos leva ao início. O que é uma Casa-Museu? 

E aqui gostaria de deixar uma provocação… Se sua casa virasse um museu, o que você gostaria que fosse preservado e exposto? Como você gostaria que isso fosse exposto? Você gostaria que tudo fosse exposto? Como você seria lembrado, se sua casa virasse uma casa-museu? 

Uma casa-museu é um museu! Porém, trata-se de um museu no qual múltiplos fatores concorrem para uma rede de significados que se interconectam, nos quais não só a coleção exposta comunica suas histórias, mas o ser humano ou os grupos humanos que constituíram esse lugar de morada estão presentes. 

Essa morada é capaz de articular o patrimônio material expresso tanto em sua edificação, nas formas e signos de uma arquitetura, quanto nos comunicando sobre formas de morar que nos remete a um espaço e tempo específicos; e ainda o patrimônio presente no interior da casa: suas coleções e documentos. 

Um conjunto que compõe a memória dos moradores, mas também se amplia à memória de um grupo social, de uma época e seu contexto histórico. 

Uma Casa-Museu também envolve outras memórias e vai além, ao articular todo um patrimônio imaterial ali contido de saberes e fazeres que envolvem uma casa.

Aqui podemos citar António Ponte (2):

Ao visitarmos estes espaços contactamos com objetos, mas não uns quaisquer objetos, com os objetos que uma pessoa ou um grupo utilizou no seu dia a dia, reflexo das suas atividades profissionais, dos seus gostos, mas também determinantes para a sua vivência, para as experiências gastronómicas e/ou profissionais. Esta análise reforça a importância da dimensão imaterial destes museus em que temos de estudar de forma semelhante várias dimensões da sua construção: a casa, contentor de objetos e memórias que temos de descobrir; o indivíduo que viveu num espaço, moldou-o à sua personalidade e cultura; a vivência, o tempo e o modo como esse espaço foi utilizado, ocupado e vivido; o acervo, conjunto de objetos que se relacionaram com o indivíduo, que os colocou ao seu serviço num espaço, num tempo e numa organização resultante do seu enquadramento pessoal

António Ponte

Quando falamos de museu, naturalmente falamos sobre memória, mas em uma casa-museu as memórias estão latentes; podemos fazer uma analogia com nossa própria experiência: quando entramos em uma casa ou local no qual convivemos: a casa da infância, a escola que estudamos, etc. Como nos sentimos? Como essas memórias são evocadas?

Na Casa-Museu Ema Klabin temos a articulação entre a memória da colecionadora, seu legado histórico e social, sua residência, sua coleção e os documentos que fazem parte do arquivo. Esse conjunto nos traz a memória de Ema Gordon Klabin, empresária, filha de imigrantes lituanos que vieram para o Brasil na segunda metade do séc. XIX e se destacaram à frente da indústria de papel e celulose. Uma mulher que teve uma participação ativa na vida cultural da cidade, como mecenas e integrando os conselhos de diversas instituições culturais. 

Sua residência,  projetada e construída em meados dos anos 50 nos conta tanto sobre o gosto de uma época, com elementos clássicos modernizados, quanto às referência da história de vida pessoal da colecionadora, que buscou inspiração no Palácio de Sanssouci, palácio de verão de Frederico II, em Postdam, lugar de afeto em sua memória pessoal.

Até aqui, já conseguimos vislumbrar muitos significados que se interconectam: a memória da colecionadora e sua família, o contexto histórico e social no qual ela viveu, a rede de profissionais e artistas que participaram de sua vida e da construção do seu legado e, por fim, os costumes que regeram a casa, o cotidiano dessa residência, suas rotinas e pessoas que trabalharam e participaram desse funcionamento de casa.  A memória social e pública se articulando a todo momento à memória individual e pessoal.

O projeto curatorial desenvolvido por Paulo de Freitas Costa buscou manter um registro dos ambientes da casa de acordo com sua composição original, adequando-os a visitação pública.

E finalmente, a coleção e suas múltiplas camadas de percepção e apreensão de significados postos pela diversidade que a caracteriza: mobiliário, objetos de arte, artes decorativas, imaginária sacra, livros, objetos etnográficos, entre outros. Uma coleção reunida de forma panorâmica, como nos diz Paulo de Freitas Costa (3), com objetos de diferentes estilos artísticos, períodos históricos, países, funções.

Objetos que estão colocados em cômodos fortemente marcados pela decoração, criando composições que modificam o significado do objeto de acordo com o cômodo em que ele está, em relação aos outros que lhe estão próximos. Se focarmos em cada objeto e fizermos um exercício de recuo no tempo e espaço, poderemos atribuir significados e funções diferentes de quando estavam em seu contexto original.  Isso nos faz pensar que cada peça da coleção também traz em si a memória de sua própria trajetória, de suas funções, contextos sociais, suas formas estéticas e simbólicas que remontam suas origens. 

Aqui um movimento em circularidade, do objeto específico em direção ao todo, e do todo ao objeto, podemos entrelaçar redes de memórias que abrangem muitas camadas. E isso compõe a riqueza de conhecimentos e significados que podem ser absorvidos na Casa-Museu.

É o curador Paulo de Freitas Costa (4) nos diz: 

Os significados atribuídos aos objetos de coleção são um híbrido composto por um lado, de elementos psicológicos e individuais, e por outro, de elementos histórico e culturais. Esses significados, ainda, se sobrepõem em múltiplas camadas, já que, além dos significados individuais de cada peça, há outros que advém do diálogo entre as peças da coleção, da forma e local onde estão expostos e, finalmente, do significado da coleção em sua totalidade

Paulo de Freitas Costa

Museu é uma palavra que, etimologicamente vem de Mouseion e se refere ao “templo das musas” ou, simplesmente, a “casa das musas”, as nove deusas filhas de Zeus com Mnemosine – a memória. E se recebemos como legado das Musas o museu, sua própria casa, hoje a “casa das musas” é de todos nós! Casas que abertas à visitação, guardam o patrimônio construído pela humanidade. 

Então, fica aqui o convite da maneira como convidamos nossos amigos:

Vai lá em casa! 

Esperamos você em casa… na casa-museu que foi de D. Ema e que hoje é nossa!

Notas

(1) BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Edusp, 1987.

(2) PONTE, António. Casas-museu – locais onde o património material e imaterial confluem numa comunicação orquestrada. São Paulo. 2018.

(3) DE FREITAS COSTA, Paulo. Sinfonia de objetos: a coleção de Ema Gordon Klabin. Editora Iluminuras Ltda, 2007.

(4) Idem.

Bibliografia

AFONSO, Micheli Martins. Casa-museu, Museu-casa, Casa histórica: um lugar de memórias. Vox Musei Arte E Patrimônio Revista Semestral |Ano 1, Número 1, JAN.-JUN. 2016 | ISSN 2357-7495

CERTAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Editora Vozes LTDA, 1998. Rio de Janeiro.

DE FREITAS COSTA, Paulo. Sinfonia de objetos: a coleção de Ema Gordon Klabin. Editora Iluminuras Ltda, 2007. São Paulo.

DE FREITAS COSTA, Paulo (org.). A Coleção Ema Klabin. 1. ed. – São Paulo : Fundação Cultural Ema Gordon Klabin, 2017. ISBN 978-85-54844-00-4

PONTE António.  Casas-museu – locais onde o património material e imaterial confluem numa comunicação orquestrada in Anais dos Encontros Brasileiros de Palácios, Museus Casas e Casas Históricas: 2014-2017 / Organizado por Ana Cristina Carvalho. São Paulo: Curadoria do Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo, 2018.

SCARPELINE, Rosaelena.  Lugar de morada versus lugar de memória: a construção museológica de uma Casa. Revista Musear| Ano 1 – Número 1 – Junho de 2012

+ do blog:

#CasaMuseuConversas – Entrevista com Lucas Bonetti

Como contribuo com a campanha Dez receitas de Ema Klabin?

Yolanda Penteado – Narrativas da Coleção

Cristiane Alves

É Coordenadora do Educativo Ema Klabin, graduada em Educação Artística e pós-graduada em Educação em Museus e em Arte, Crítica e Curadoria. Atua em Educação em Museus há.... bastante tempo! E segue acreditando no potencial da Educação como agente de liberdade. #ELENÃO