Balada do Terror e 8 Variações

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Balada do Terror e 8 Variações é um álbum composto por 9 litografias da artista ítalo-brasileira Maria Bonomi com tiragem de apenas 20 exemplares, dos quais um pertence a Coleção Ema Klabin. O título povoa nossa mente de suposições que podem nos levar ao questionamento sobre o que provoca terror em alguém e, na nossa contemporaneidade, essa resposta pode ser múltipla. 

Maria Bonomi tem uma trajetória de intensa produção em gravura, escultura, desenho e pintura, que também inclui cenografia e figurino, além de sua atuação como professora, pesquisadora e curadora, se notabilizando como uma das mais importantes e produtivas artistas contemporâneas brasileiras.

Provavelmente já tivemos contato com suas obras em nossos trajetos pela cidade, como é o caso da “Epopeia Paulista”, de 2005, exposta na Estação da Luz do Metrô de São Paulo, na qual podemos ver elementos da gravura nos relevos da superfície, sugerindo os sulcos na madeira.

Epopeia Paulista

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“A gravura é uma linguagem, ela não é uma técnica, ela te propõe uma matriz que se move, você pode movê-la, ela te propõe os sulcos, que é onde você grava, ela te propõe a impressão simples e combinada em qualquer superfície […] é um mundo infinito de realização”

Especial Arte 1- Maria Bonomi

Maria Bonomi nasceu em Meina, nos arredores de Milão, em 1935. Sua mãe, a brasileira Georgina Martinelli Bonomi e seu pai, o italiano Ambrógio Bonomi, vieram com a filha para o Brasil logo após a II Guerra Mundial, desembarcando no Rio de Janeiro, onde a pequena Maria esteve na casa do avô materno, o Comendador Giuseppe Martinelli, empresário idealizador do Edifício Martinelli, ícone na história de São Paulo. 

Desde muito cedo, Maria Bonomi esteve imersa no circuito cultural da cidade. Começou a estudar pintura no começo dos anos 50, como aluna de grandes nomes como Yolanda Mohaly, Karl Plattner e Lívio Abramo, mestre que a orientou no desenvolvimento da gravura. No começo dos anos 60, os dois fundaram o Estúdio Gravura, um ateliê experimental de ensino de gravura.

A trajetória de Maria Bonomi e da colecionadora Ema Klabin se entrecruza desde a juventude da artista, pois frequentavam os mesmos círculos sociais. Mais tarde, em 1963, a artista expôs seis xilogravuras na VII Bienal de São Paulo, ganhando por uma delas o prêmio de aquisição, ocasião na qual Ema Klabin estava no conselho da instituição, motivando um maior contato entre a artista e colecionadora.

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“A gravura tem a multiplicação de originais. Porque não é a reprodução, é a multiplicação de originais. A reprodução é uma cópia. São todos originais. Aí comecei a batalhar pela gravura.”

Esta citação de Maria Bonomi encontra-se na obra: ALMEIDA, Miguel de. Maria Bonomi. São Paulo: Lazuli : Companhia Editora Nacional, 2008. A citação também aparece na tese: PUJATTI, Leonardo. A interface digital nas digigrafias de Maria Bonomi. 2017. Tese (Doutorado – Pós-Graduação Interunidades em Estética e  História da Arte) – Universidade de São Paulo, 2017. p. 73.

Em 1971, Maria Bonomi e Jayme Maurício organizam uma grande exposição no Museu de Arte Moderna – MAM no Rio de Janeiro a convite de Niomar Muniz Sodré Bittencourt, que é descrita como uma das mais memoráveis sobre a gravura no Brasil. É sobre essa exposição que Clarice Lispector escreve uma carta à artista, publicada em 1971 no Jornal do Brasil: “As gravuras de Maria são tocáveis e, no entanto, delas emana, como um véu o inefável. Mesmo no MAM Maria improvisou um atelier e na frente dos visitantes fazia matrizes e gravava. O trabalho criador é tão misterioso que se podem ver os processos se elaborando e, no entanto, continuarem no seu mistério.

Clarice Lispector fala também da relação entre escritores e artistas: “o livro que eu estava tentando escrever e que talvez não publique corre de algum modo paralelo com a sua xilogravura […] Maria escreve meus livros e eu canhestramente talho a madeira. E também ela é capaz de cair em tumulto criador – abismo do bem e do mal – de onde saem formas e cores e palavras.

Maria Bonomi e Clarice Lispector na exposição Xilografias Tranzamazônica-China, de Maria Bonomi, na Galeria Bonino, 1975 (Acervo Maria Bonomi)
Maria Bonomi e Clarice Lispector na exposição Xilografias Tranzamazônica-China, de Maria Bonomi, na Galeria Bonino, 1975 (Acervo Maria Bonomi)

A carta ainda nos conta sobre um universo pessoal e cotidiano, como o fato de Clarice ser madrinha do filho de Maria, ou da gravura “Águia”, que originou a carta, ter sido um presente da artista e o fato de que Clarice pediu não a gravura, mas a matriz, pedido atendido pela amiga e comadre.

“Convido desde já meus amigos para virem ver. Está bem na entrada da sala, e com luz especial para serem notadas as saliências e reentrâncias da escura madeira imantada. […] Imagino Maria no seu atelier usando as mãos – instrumento mais primitivo do homem. Com suas belas mãos potentes é que pega os instrumentos e imprime a heroica força humana do espírito, cortando e alisando e entalhando. E pouco a pouco os dormentes sonhos de Maria vão se transmutando em madeira feita forma.” 

Jornal do Brasil, Caderno B, pág. 2; Rio de Janeiro, sábado, 02 de outubro de 1971

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“A gravura é uma postura mental antes de ser uma técnica, ela é uma linguagem, é um pensamento, o pensamento gráfico é único e ele se realiza em qualquer material”

 EspecialArte 1: Maria Bonomi

Na abertura dessa exposição foi lançado o álbum “Balada do Terror e 8 Variações”, um conjunto de 9 litografias. O álbum abre com um índice no qual são apresentados comentários da artista e anotações técnicas, que explicitam o processo e materiais, além de anotações que sugerem as ideias que motivaram cada gravura. Há ainda uma homenagem ao pai Ambrozio Bonomi, a quem ela dedica toda a série. 

O cuidadoso processo iniciou-se ainda em 1968 com o mestre impressor Octávio Pereira, recém saído da Gemini, em Los Angeles, um dos mais importantes ateliês de gravura dos Estados Unidos. A litografia, diferente da xilogravura, é realizada em pedra com características específicas, que Maria Bonomi compara a um “super filme”, onde somente ao tocá-la com os dedos, fica um registro na superfície. Ao invés dos sulcos marcados por retirar material da madeira, como a xilogravura, o registro na pedra se faz com um lápis ou qualquer bastão a base de óleo. O resultado se assemelha à aquarela. A pedra absorve o óleo, permitindo a multiplicação da imagem.

O processo litográfico e de impressão do álbum, primeiro a cores feito no Brasil, envolveu extremo zelo e apuro técnico em um meticuloso trabalho de impressão que gerou mais de 1.400 estágios e provas a fim de alcançar a precisão desejada – um volumoso trabalho para uma tiragem reduzida a 20 exemplares. Ao final do processo, a artista cancelou as matrizes com um grande X, aumentando ainda mais a raridade da edição. Em São Paulo, o álbum foi comercializado pela Galeria Cosme Velho, onde Ema Klabin adquiriu seu exemplar logo no lançamento.

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Como falar de acontecimentos que são difíceis demais para serem contados? Como traduzir em imagem coisas como o terror, o sofrimento, as tragédias? 

O conjunto é uma explícita crítica à ditadura civil militar brasileira e às ações contra a dignidade humana perpetradas no período. A gravura que deu nome ao álbum, com uma grossa faixa vertical vermelha ao centro, fica marcada na nossa memória visual como um rastro, mesmo quando se viu a obra poucas vezes. É essa a força principal desses trabalhos: permanecem em nossa memória residual e, ao menor sinal, a lembrança vem forte como um jorro de tinta.

A gravura é uma homenagem à produtora cultural Dulce Maia (1937 – 2017), que em seu currículo tem a produção da peça de teatro “Roda Viva” de José Celso Martinez Correa, ícone na história do teatro brasileiro. Dulce Maia foi presa em 1969 e torturada durante aproximadamente um ano e meio (janeiro de 1969 a junho de 1970), período em que não teve permissão para sair nem mesmo para acompanhar o sepultamento de sua mãe. Quando saiu da prisão, pesando 39 kg, partiu para o exílio e foi uma das primeiras pessoas a retornar ao país após a Lei da Anistia, em 1979. Seu depoimento à Comissão Nacional da Verdade, tomado em 2014, está disponível ao público. 

A obra de Maria Bonomi consegue transpor o tema para o universo gráfico: quando olhamos para essa série, mesmo sem conhecer seu contexto, sentimos que essas gravuras são densas, com cores, sobreposições e gestual expressivos e monumentais. Apesar de sua beleza e expressividade, nos causam uma sensação de desconforto, pois nelas podemos intuir algo que marcou um processo doloroso para história do nosso país. 

Como uma obra abstrata pode ser capaz de comunicar ao público uma mensagem narrativa, uma denúncia? 

Nada está entregue, não é um noticiário revelando um assassinato ou a tortura, mas existe uma carga dramática que nos remete ao terror daquele momento. O grau de entendimento não é literal: cada um, com seu próprio repertório, fará sua leitura. 

Além disso, Maria Bonomi utiliza alguns recursos: primeiro, nomeia o álbum “Balada do Terror”, título necessário à compreensão da obra. Segundo, o álbum contém um índice com indicações importantes sobre a densidade e intensidade da narrativa.

 “Uma bela manhã o local amanheceu vandalizado, destruído. Fomos acusados de ser subversivos e o local foi encarado como aparelho onde ocorriam reuniões clandestinas… ninguém estava lá andando com arma, mas tínhamos cara de revolucionário.”   

Trecho refere-se ao  Estúdio de Gravura, local compartilhado com o artista Lívio Abramo em 1960. LUCENA, T., editora-chefe.  Depoimento Maria Bonomi. Revista Biblioteca Mário de Andrade: Medo, São Paulo, vol. 70, p.88-103, outubro de 2016.

Depois de retornar de uma viagem à China, em 1974, Maria Bonomi também viria a ser presa pelo regime militar no final de uma palestra no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ao sair da instituição, foi abordada e levada para prestar depoimentos, sendo liberada só depois de dois dias. Após a prisão, passou a sofrer retaliações, tendo dificuldade em expor e comercializar suas obras em território nacional, e decidiu partir em busca de novas oportunidades para sua carreira na Europa, expondo na Liubliana (antiga Iugoslávia) e viajando para cidades como Praga e Berlim.

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O álbum Balada do Terror e 8 Variações faz parte do núcleo de Arte Brasileira da coleção Ema Klabin e demonstra o olhar atento que a colecionadora sempre teve para itens de notável importância. É uma das poucas obras de arte abstrata da coleção.

Hoje, ao contemplarmos o álbum, constatamos que a obra de arte transcende seu tempo e pode evocar a memória de seu contexto ou do acontecimento ao qual se refere. Talvez possa ser um farol que, ao mesmo tempo que nos guia ao passado, também nos alerta quanto ao presente e nos impele imaginativamente a projetar outros futuros.

Vídeo depoimento Maria Bonomi

Balada do Terror e 8 Variações, Maria Bonomi. 1971.

Pesquisa e Concepção

Educativo – Cristiane Alves (Coordenação), Felipe de Azevêdo e Rosi Ludwig (Educadores)

Projeto Editorial

Comunicação – Henrique Godinho (Coordenação), Lívia Silva (Designer)

Coordenação Geral

Paulo de Freitas Costa (Curadoria)